Um ano “baseado em clássico” e “baseado em fatos”. Os meses de 2024 na TV e no streaming foram marcados pela transformação de um dos maiores livros da literatura do século XX (“Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez). O público aprovou — e engajou nas redes também para problematizar aspectos de histórias reais transformadas em obras de ficção, como em “Senna” e “Bebê Rena”.
Foi um ano de comemoração de um novo capítulo da história da TV aberta com as atrizes Duda Santos, Jéssica Ellen e Gabz, mulheres negras ocupando o protagonismo das três principais novelas da TV Globo. Isso aconteceu 20 anos depois de Taís Araujo interpretar a primeira protagonista negra da emissora, em “Da cor da pecado”. O tema da representatividade também apareceu na série documental “Pra sempre Paquitas”, do Globoplay. Os episódios fizeram rir (“que Xou da Xuxa é esse” virou um dos memes de 2024), mas descortinaram retratos importantes de práticas no audiovisual.
Passos adiante aconteceram cá e lá. No Emmy, “Xógum: A gloriosa saga do Japão” venceu o Emmy de melhor série de drama e se tornou a primeira falada em outro idioma além do inglês a conseguir tal feito. Hiroyuki Sanada e Anna Sawai também foram os primeiros japoneses a serem premiados no evento como melhores atores da categoria.
Realismo dramatizado
O caso de um comediante perseguido por uma desconhecida e a vida de um dos maiores ídolos da Fórmula 1. A britânica “Bebê rena” e a brasileira “Senna”, ambas da Netflix, dramatizaram histórias reais e mobilizaram a audiência em torno de suas tramas e personagens muito (ou pouco) retratados na tela. No caso gringo, premiado com o Emmy 2024 de melhor minissérie ou antologia, houve uma “investigação” online voraz sobre a identidade da stalker Martha Scott, interpretada por Jessica Gunning (na foto, também vencedora do Emmy de melhor do formato). A suposta assediadora real, então, não só veio a público como está processando a plataforma pela forma como a história foi contada. Já na produção brasileira, o assunto foi o tempo de tela destinado a Adriane Galisteu, namorada de Ayrton quando ele morreu, numa corrida em 1994. Houve quem calculasse (2 minutos e 34 segundos) e se indignasse. Apesar de ambas as séries serem “baseadas em fatos”, o que garante liberdade de abordagem à equipe de roteiro, a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e especialista em ficção seriada Melina Meimaridis salienta que a fronteira entre realidade e ficção, para audiência, é porosa. “Não há uma parede entre os dois. As pessoas têm dificuldade em separar”.
Fantástica fábrica de sonhos
Parecia impossível, mas aconteceu. “Cem anos de solidão”, obra-prima de Gabriel García Márquez, virou série. Quando vivo, o escritor nunca vendeu os direitos da história da família Buendía e do mítico povoado de Macondo por acreditar que ela não era filmável e por achar que, no fim das contas, a produção seria norte-americana. A Netlix, porém, se comprometeu com os herdeiros a dar 100% do controle a latinos e daí saiu uma das séries de realismo mágico mais bem-feitas do streaming. O lançamento da produção colombiana foi pouco depois de “Os quatro da Candelária”, também da Netflix, que toma como pano de fundo a Igreja carioca 35 horas antes da chacina de 1993, mas não se atém ao crime. Passeia pelo passado e sonhos de quatro crianças fictícias e flerta com o mesmo tipo de fantasia e também afrofuturismo. “Acredito que teremos cada vez mais espaço para essas narrativas no streaming, vindo principalmente da América Latina e também da Coreia do Sul, com outros tipos de lendas e mitos”, diz Melina Meimaridis, da UFF. “Temos muito pouca coisa disso na TV (aberta), regida pela lógica da verossimilhança. Mas existe público para o fantástico, basta ver quantos brasileiros vão ver ficção científica no cinema. E o streaming pode fazer conteúdo considerado de nicho porque está em vários mercados.”
A união fez a força
A parceria entre o Globoplay e o AfroReggae Audiovisual rendeu os principais sucessos de ficção da plataforma da Globo no ano. O principal deles é “Arcanjo renegado”, série de ação protagonizada por Marcello Melo Jr. e hit de consumo e vendas de assinatura com sua terceira temporada — estão previstas seis no total. Outro acerto foi “O jogo que mudou a história” (na foto), criada por José Júnior e dirigida pelo cineasta Heitor Dhalia. Os episódios hiper-realistas dramatizam a origem da facção criminosa Comando Vermelho, sob a ótica de quem estava dentro do presídio de Ilha Grande no momento em que tudo começou, no fim dos anos 1970. A ideia é ter sete temporadas, que cheguem até os dias atuais, com a ascensão das milícias.
Feito histórico
Pela primeira vez nos 60 anos da TV Globo, comemorados em 2025, as protagonistas das três novelas inéditas da emissora são mulheres negras. Em “Garota do momento”, Duda Santos (à esquerda) é Beatriz, primeira garota-propaganda negra de uma marca de perfume — em pleno Rio dos anos 1950. Jéssica Ellen (no centro), em “Volta por cima”, na faixa das 19h, é Madá, moradora do subúrbio fictício de Cambucá, que, depois da morte do pai, vira empreendedora de decoração de festas. Em “Mania de você”, no horário nobre das 21h, Gabz é Viola, que começa a novela como namorada de Mavi (Chay Suede) e amiga de Luma (Ágatha Moreira), mas tudo muda com as reviravoltas da trama.
Horário nobre
As novelas das 18h da TV Globo exibidas neste ano provaram que a dramaturgia da faixa horária anda mais rica do que nunca. “No rancho fundo”, de Mário Teixeira, com Andrea Beltrão no elenco, agradou público e crítica ao mesclar uma nova trama com elementos de “Mar do sertão” (2022). Sua sucessora, “Garota do momento”, tem ótimas atuações e direção de arte e bons índices no Globoplay.
Que xou da Xuxa é esse?
Só quem estava fora do Brasil desconhece a frase dita pela criança indignada que “chegou 3h da madrugada” na fila do programa da Xuxa. Ela foi uma das estrelas da série documental “Pra sempre Paquitas”, um dos hits do Globoplay. Mas os episódios não foram só risada e nostalgia. Houve discussões sobre trabalho infantil, rivalidade e falta de representatividade nos últimos 40 anos.
Quem precisa de Batman?
Se “Família Soprano” invadisse o universo do homem-morcego, o resultado seria “Pinguim”, estrelado por Colin Farrell no papel principal e Cristin Milioti como Sofia Gigante. A série da HBO e da Max — que não tem a presença de Batman — mostra como o vilão se tornou quem é depois de se envolver numa guerra da máfia. A série tem como showrunner uma mulher, Lauren LeFranc.
Outros amores
A comédia romântica ganhou novos ares por aqui e lá fora com as séries “Amor da minha vida” (Disney+) e “Ninguém quer” (Netflix). A primeira, estrelada por Bruna Marquezine e criada por Matheus Souza, trazem reflexões sobre amizade, inseguranças, sexo casual e (des)esperança que prendem o espectador. Quem assiste à segunda também fica vidrado com a relação entre uma podcaster agnóstica e um rabino que fazem de tudo para dar certo.
A premiada saga do Japão
“Xógum”, do Disney+, fez a limpa no Emmy: foram 18 estatuetas, incluindo melhor drama. Este foi o recorde de série com maior número de prêmios em uma única cerimônia. A produção é uma adaptação do best-seller de James Clavell e acompanha os intrincados e violentos confrontos entre dinastias do Japão nos anos 1600. Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada) é um importante senhor feudal que luta por sua vida após um complô de ex-aliados.
Encontro de gerações
Vinte anos após o fim de “Sex and the city”, a geração Z (nascida entre o final dos anos 1990 e início dos 2010) conheceu Carrie Bradshaw e suas amigas com a chegada das seis temporadas da série a Netflix. Os millennials (nascidos entre 1981 e 1996) reviram as aventuras das nova-iorquinas com olhos mais críticos. As redes sociais, portanto, foram invadidas por problematizações e, claro, memes sobre a produção da HBO, um marco da TV na época.
Deu o que assistir — e falar
Segundo a empresa de consultoria de entretenimento Parrot Analytics, os reality shows tiveram crescimento de 76% em consumo na TV, plataformas e burburinho nas redes em comparação com 2023. O “BBB 24” ajudou a puxar os números: teve desistência (de Vanessa Lopes), expulsão (de Wanessa Camargo) e briga até os últimos dias (de Bia e Davi, o campeão da edição, cujo casamento e separação com Mani Reggo foram escrutinados por semanas depois do jogo).
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