O telefone da empresa de papel Dunder Mifflin soou pela primeira vez há quase 20 anos — e nunca mais parou de tocar. Desde março de 2005, quando a série “The Office” estreou nos EUA, a produção foi conquistando baias no escritório do inconsciente coletivo mundial. Inclusive entre quem, mesmo sem nunca ter assistido a um episódio, topa com seus memes diariamente. Entrou até para o léxico: em um dia de caos no trabalho, alguém sempre diz que “isso aqui está parecendo ‘The Office!’”
A comédia em que o cotidiano de uma firma com um chefe sem-noção é registrado por equipe de documentário surgiu como série cult inglesa em 2001 antes de se tornar um blockbuster americano. A partir daí, a franquia “The Office” abriu filiais em uma dúzia de países, do Chile ao Canadá, da França à Finlândia, da Arábia Saudita à Índia. E a marca segue viva: o Prime Video acaba de lançar o remake australiano, o primeiro com uma mulher na chefia da firma, e o streaming da rede NBC começou a produzir um spin-off, “The paper”, que se passa em um jornal falido do interior dos EUA.
Redescoberta na pandemia, o “The Office” americano garantiu um lugar no Top 10 de sitcoms mais populares dos últimos cinco anos divulgada recentemente pela consultoria Parrot Analytics. Enquanto isso, a popularidade do programa no Brasil levou o banco Nubank a trazer ao país o ator Leslie Baker (o impaciente Stanley da série), para estrelar uma campanha sobre aposentadoria — alusão à boa vida após anos de trabalho maçante na Dunder Muffin.
Maíra Bianchini, pesquisadora de ficção seriada televisiva e cocriadora do grupo acadêmico Estude Série, elege um aspecto preponderante para “The Office” se destacar no passado e perdurar no presente: a universalidade do tema.
—A série ecoa uma experiência universal no Ocidente, que são as referências do trabalho — diz Maíra. —Existe a presença garantida, em todos os escritórios, da pessoa sem-noção. Todo mundo nesse ambiente sabe que tem alguém “fora da casinha”, que gera situações bizarras.
Michael Scott vs David Brent
Esse alguém, no “The Office” americano, é Michael Scott, interpretado por Steve Carell. Ele é muito mais afável do que o chefe original, David Brent, interpretado pelo sarcástico comediante britânico Ricky Gervais, criador da série. David é um sujeito arrogante e desagradável que quer ser legal, mas é apenas um idiota. Michael, por sua vez, consegue mostrar ao público que as situações embaraçosas que cria, na verdade, são mais fruto de ingenuidade do que má-fé.
—De cara, a gente não gosta do Michael. Mas, com o passar das temporadas, percebemos que são inseridos elementos para humanizá-lo — diz Gautier Lee, roteirista de séries brasileiras como “De volta aos 15” e “B.O”, da Netflix.
Gautier chegou a presentear um chefe, fã como ela, com uma caneca igual a que Michael presenteou a si mesmo na série, onde se lê “world’s best boss” (“melhor chefe do mundo”).
— Michael não é um escroto, é um sujeito bem intencionado que se manifesta de forma esquisita — diz Lee.
Da ironia à sinceridade
Outro roteirista-fã da “empresa” é Pedro Riguetti, que reviu a versão americana por dez vezes — e, pasme, são nove temporadas. Para ele, “The Office” é uma espécie de “série conforto”, aquela que se assiste quando não se quer pensar em muita coisa. Não conseguiu, porém, passar do segundo episódio da original, que tem, no total, apenas 14.
—Tem o humor britânico, mas o constrangimento é estendido ao máximo. Achei tudo muito incômodo — diz Pedro, que participou da sala de roteiro de produções como “Os outros” e “Sob pressão”.
O roteirista explica que a versão dos EUA ajuda a marcar uma mudança nas comédias no audiovisual.
—Antes, “Seinfeld”, “Simpsons”, todas muito boas, eram focadas na ironia. Depois, há uma transição para a sinceridade — diz Pedro. — Os personagens são problemáticos, ainda irônicos, mas têm redenção. “The Office” vai avançando, e você percebe que tudo que o Michael faz é justificado pelo passado dele, um cara sozinho que transformou o trabalho na família. Sempre choro vendo o último episódio do Steve Carell.
Hannah Howard
Felicity Ward, a atriz que interpreta Hannah Howard, a chefe da recém-lançada versão australiana, traça uma linha progressiva de carisma e afeição entre os três chefes que falam inglês no universo “The Office”.
— Acho que Hannah Howard é muito mais calorosa — diz a artista, ao GLOBO, por videochamada. —Michael Scott também é mais caloroso do que David Brent. E isso também reflete em diferenças culturais entre os países. Os britânicos podem ser muito sombrios, e são muito bons em fazer isso ser engraçado. Por isso que você ainda assiste, mesmo sendo tão difícil de ver, porque aquele chefe é muito repulsivo.
Outra característica que fez “The Office” ter sido tão aclamado é o formato mockumentary, ou falso documentário. Não é o primeiro a brincar com a linguagem documental na TV, mas é certamente um dos mais lembrados pela melhor dobradinha forma e conteúdo.
— Essa linguagem do mockumentary permite que entrar na intimidade dos personagens, algo que não temos acesso na narrativa convencional — diz o roteirista Pedro Riguetti. — Isso cria um contraste entre o que eles fazem e quem eles realmente são.
Atualização
Apesar de todo reconhecimento que a série ainda recebe, não está imune às críticas sobre o teor de piadas de cunho racista, sexista e homofóbicas. O próprio Gervais já disse que se fizesse o mesmo atualmente seria cancelado. A versão australiana é, segundo a própria protagonista, a atriz Felicity Ward, uma atualização do texto.
— Hannah é uma personagem escrita e interpretada 20 anos depois, então ela é mais moderna do que Michael Scott — diz a atriz. — O racismo, a intolerância, os deslizes ou insinuações sexuais parecem muito intencionais nas versões britânica e americana. Na australiana, especialmente com minha personagem, é mais acidental.
A roteirista Gautier Lee ainda não assistiu ao “The Office” da Austrália, mas concorda que esta e futuras adaptações precisam fazer a lição de casa.
— Algumas piadas não funcionam mais, são gordofóbicas, transfóbicas. Até consigo entender que era num tempo em que isso era extremamente comum mas, se vier na versão australiana, aí eu vou dizer: “Peraí, nós já aprendemos que não é assim”.
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